Revista Ajuferjes - Os desafios inesperados da pandemia

Frederico Montedonio

No repertório de possíveis catástrofes de alguém que cresceu nos anos 1980 e 1990, para mim era mais fácil imaginar que eu poderia viver uma guerra mundial ou uma invasão alienígena do que uma emergência global de saúde pública. Lembro-me bem de não ter dado a menor importância a uma notícia enviada por um amigo no final de 2019, sobre um novo vírus identificado na China. Comentei com a minha esposa sobre o vício desse meu amigo em notícias e que ele precisava relaxar. Mas ninguém escolhe os desafios do seu tempo. Eu mal sabia que aquela notícia mudaria tudo muito rapidamente.

Em 12/3/2020, dia seguinte ao reconhecimento da pandemia pela OMS, todos os funcionários da Vara nos reunimos e nos despedimos. Sabíamos que começaríamos a trabalhar remotamente por um período indeterminado e que assim protegeríamos uns aos outros. Deixei meu gabinete sem saber quando voltaria. Logo eu, que sempre preferi ficar até mais tarde no trabalho a levar processos para casa. Em geral, sempre que eu tentava trabalhar fora do prédio da Justiça falhava miseravelmente e só carregava peso para lá e para cá. Dessa vez eu precisaria aprender, e assim levei para casa parte dos meus livros. Quem também trouxe peso para casa foram minhas filhas: no dia seguinte, uma sexta-feira, ambas voltaram da escola com todos os livros, cadernos e materiais em bolsas, para uma temporada indefinida de ensino a distância.

Logo no começo da pandemia, além do coronavírus propriamente dito, outra coisa viralizou: uma frase, dita por um apresentador de TV português, lembrava a gravidade do momento e a simplicidade do que estava ao alcance de quem podia ficar em casa. Disse ele: “aos vossos avós foi-lhes pedido para irem à guerra; a vocês, pedem-vos para ficar no sofá. Tenham noção”. Com o tempo, aprendemos que a autoproteção era também uma forma de proteger toda a humanidade, pois cada contaminação gera novas oportunidades de mutação do vírus e um agravo à saúde pública. Decididos a levar a sério o desafio inesperado imposto pelo nosso tempo, começamos a viver o distanciamento social.

Ficamos os primeiros três meses da pandemia literalmente trancados no apartamento. Só saíamos para tirar o lixo. Eu tomava sol e fazia algum exercício físico na varanda. Minha mulher e eu vimos as tarefas domésticas se multiplicarem enquanto nossa rede de apoio foi reduzida a zero. As meninas agora tinham aulas online e era preciso supervisionar os horários e as tarefas delas. Ao mesmo tempo, novas demandas do trabalho remoto se impunham, e, para completar, a pandemia veio bem no meio do mestrado cursado pela minha esposa. Se dentro de casa o contexto era estressante, o mundo lá fora parecia ainda mais ameaçador: uma nova doença mortal se espalhava por uma população sem imunidade; as vacinas eram uma miragem; máscaras de pano e a higienização das mãos e de todos os itens das compras eram o que havia no momento; um número ainda maior de pessoas passou a sofrer de insegurança alimentar; tratamentos ineficazes e até prejudiciais eram vendidos como milagrosos; houve quem apostasse na disseminação do vírus ao invés da sua contenção; as notícias de internações e mortes por covid, inclusive entre amigos e conhecidos, ficavam mais frequentes. Comprei um oxímetro, consumi tantas notícias quanto o meu amigo e passei a ter dificuldades para dormir.

Começamos então a amadurecer a ideia de alugar uma casa: já que iríamos ficar confinados, que ao menos fosse num lugar com um quintal. Pesquisamos bastante e alugamos um lugar com área externa e uma boa internet para podermos continuar a trabalhar e estudar. Minha esposa e eu também convidamos os nossos velhos, contanto que todos nós fizéssemos teste de PCR negativo. Deu tudo certo com os testes e lá nos encontramos. Foi um alívio para todos. Ainda repetimos essa experiência bem-sucedida algumas vezes.

Quando a escola das meninas voltou a ser presencial, retornamos para o apartamento. A essa altura eu já estava adaptado ao trabalho remoto. Cuidei da ergonomia e fiz audiências complexas por videoconferência: interroguei réus na Espanha, ouvi testemunhas na Argentina e outras espalhadas por todo o Brasil, sempre com a porta trancada, para não correr o risco de uma das meninas invadir a sala de audiências (também conhecida como o quarto do papai). Nas circunstâncias, e apesar do que se perde pela falta do contato presencial, minha experiência com o trabalho remoto funcionou muito bem: creio que, com alguns ajustes, ele veio para ficar e será uma ferramenta adicional e valiosa. Por outro lado, foram eliminadas as fronteiras entre casa e trabalho: é como se eu tivesse passado a morar na Justiça. Por vezes, devido ao cotidiano doméstico sobrecarregado, despachei processos em horários, digamos, heterodoxos. Procurei controlar o horário dos meus contatos com os servidores, pois não queria contribuir para que a vida pessoal deles fosse ainda mais invadida pela profissional. Registro meu reconhecimento pelo extraordinário trabalho de todos eles, fundamental para a continuidade da prestação jurisdicional na pandemia, apesar dos dramas pessoais que cada um viveu nesse período.

Até que, em meados de junho deste ano, minha esposa pegou covid, felizmente na forma leve. As meninas e eu, não sei como, testamos negativo. Minha mulher se isolou na “sala de audiências” e eu fiquei com as meninas novamente trancado em casa no período de quarentena, durante o qual elas não podiam frequentar a escola. Foram dias ainda mais intensos. Quase ao final dos dez dias de isolamento, as meninas e eu também começamos a ter sintomas de tosse e congestão nasal. Fiquei bastante chateado: embora tenhamos nos protegido muito desde o início, agora possivelmente tínhamos o vírus mutando dentro de nós. Mas, ao repetirmos o PCR, para nossa surpresa, as meninas e eu testamos negativo mais uma vez. Foi uma vitória pessoal. Os sintomas deviam ser apenas resultado da poeira que se acumulou em casa nesses dias.

Aos poucos, foram chegando as vacinas – produzidas em tempo recorde pela ciência –, e os nossos velhos se vacinaram. Depois chegou a nossa vez, tão ansiosamente aguardada. Espero que as meninas também possam se vacinar em breve. Felizmente em nossa família não perdemos ninguém para a covid. O que perdi momentaneamente foi a fé na humanidade em razão do noticiário – fé essa rapidamente recuperada diante dos prodígios que essa mesma humanidade é capaz de fazer –, e também por vezes perdi a calma e paciência por ocasião dos conflitos decorrentes do confinamento. Além da imunidade, ganhei outras coisas durante a pandemia: descobri vários podcasts – companheiros de todas as horas –, aprendi finalmente a cozinhar o básico e a trabalhar em casa, bem como a valorizar ainda mais a família e as tarefas domésticas. Também entendi, de uma vez por todas, que tudo o que fazemos pode literalmente contagiar quem está à nossa volta e se espalhar por todo o mundo, para o bem e para o mal.

Diante da dimensão da tragédia da pandemia, meu modestíssimo balanço de perdas e ganhos revela uma posição privilegiada. Tantas pessoas perderam tanto que não me atrevo a consolá-las: apenas fico imaginando o tamanho da dor e humildemente me solidarizo. Só espero permanecer vivo – uma forma de resistência – para poder finalmente encontrar tantas pessoas queridas que não abraço há mais de um ano e meio, e para continuar servindo diante dos demais desafios do nosso tempo, que não são poucos, nem pequenos.

Frederico Montedonio é Juiz Federal da 8ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro.

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